terça-feira, 29 de setembro de 2009

MUQUIFO NA LIVRARIA, 6.

A DECORADORA.

Ouvi primeiro o tataratatá do salto de dez pavimentos do seu escarpan. Quando entrou exuberante e altiva, nem olhou para os humanos que estavam na livraria. Ficou procurando.
Tentei me posicionar no seu campo de visão para apresentar-me à sua disposição. Mas tinha que pular se fosse o caso. Fiquei no chão mesmo.
Ela começou a recitar:
-Quero um livro caro e grande. Mas antes de ser grande, ele tem que ser bem caro. Busco um azul... ai meu Deus... não tem nenhum azul aqui que me sirva de referência. Um azul mais escurinho que esse aqui, mais royal, entende? Mas tem que ser bem maior! E não esquecendo, caro. Já vi que vocês não tem. A gente não encontra nada em Belo Horizonte, aliás, no Brasil.
Na Europa, em qualquer muquifo que você entra, encontra de tudo, de todas as cores...
-(...)
-Eu só irei para Europa na semana que vem e eu preciso acabar o projeto de decoração da minha cliente ainda nesta semana. Gente, é tão simples: um livro caro, grande, azul, para colocá-lo numa mesa de vidro temperado e bisotado de três metros por um metro e meio, dos pés em aço cirúrgico de um metro, para combinar com uma cortina azul na sala sete, também azul a lá Yves Klein... (tatararatatá... foi se encaminhando para a saída, no que ainda ouvi de seus lábios carmins):
-Hum, eles lá vão saber quem é Yves Klein!!! (foi-se embora)
Foi a primeira vez que atendi a uma cliente, buscando um azul misterioso, diante de um balé de pordebrás, sem mesmo dizer uma só palavra.

MUQUIFO NA LIVRARIA,5

VESTIBULANDOS

-Boa tarde!
-Cê tem os livros do vestibular?
-Tenho todos.
-Quanto custa?
-Qual?
-Todos.
-Tanto.
-Nossa!!!
-E o mais barato?
-Tanto.
-Nossa!!!
-E os outros?
-Irei te dar os preços de cada livro separadamente.
-Pode ser.
Passei para ela todos os preços.
-Posso dar uma olhadinha no mais barato?
-Claro, aqui está.
-Nossa!!!
-O que?
-Dessa grossura, o mais barato! Imagino os outros que são mais caros, devem ser uma bíblia!
-O preço de um livro não se mede pela grossura...
-Ah, não? Pensei que quanto mais páginas tiver, mais caro é.
-Não. Leva-se em conta, vários aspectos como direitos autorais, tradução, ilustração, edição, etc.
-Nossa!!!
-O que?
-Que complicação!
-Mas vale a pena você comprar livros, é um investimento e uma necessidade para que você possa passar no vestibular. Você irá fazer exatas?
-Odeio matemática.
-Biomédicas?
-Odeio química.
-O que você irá fazer?
-Letras - adoro livraria!
-E os livros?
-Estes são muito caros.
-E a literatura?
-Acho que vou comprar os resumos.

MUQUIFO NA LIVRARIA, 4

ADORO LIVROS, MAS PREFIRO CALÇA JEANS

-Bom dia!
-Oi, tudo bom? Eu só tô dando uma olhadinha... não posso passar em frente a uma livraria, que eu fico doidinha pra entrar e entro; eu adoro ler, eu li agora um "lindo"... é a história de um casal apaixonado que entra em crise conjugal, se separa, ela adoece com um tumor, ele volta para assisti-la mesmo tendo uma amante e descobre que o amor entre ele e a adoecida, ultrapassa qualquer barreira.
-Legal!
-Legal não, é lindo. Pena que ela morre no final e ele, desesperado, prepara a sua própria morte.
O melhor do livro, é que ele não diz se ele realmente suicida. Deixa em aberto para que a gente fique esperando o volume dois. Quando é assim, menino, você, comissionado, está feito na minha mão; eu compro todos da série. Não vivo sem livros. Leio até prospectos eleitorais, cê acredita?
-Que bom!
-Bom não, é ótimo! Mas eu estou trabalhando demais, num órgão governamental...
-É a gente trabalha demais nos órgãos governamentais... não sobra tempo pra nada...
-Eu até tento ler nos intervalinhos, mas sempre chega um chato e me interrompe, quebrando assim, o ritmo psicológico da minha leitura, tirando completamente minha concentração e me fazendo embananar toda a história. Aí, eu tenho que voltar. Eu volto. Aí entra um outro chato. Por que essas pessoas não compram um bom livro e ficam lendo em casa, né?
-Né.
-Tô doida pra ler um livro do Nietzsche! Aquele que ele chora... esqueci o nome... como é mesmo?
-Quando Nietzsche Chorou?
-Isso! Tem também aquele, que eu adoro dar de presente... como é mesmo?
-(...)
-Ô menino, me ajude a lembrar...
-(...)
-O que as misses gostam muito de ler e recomendam pra gente ler...
- O Pequeno Príncipe.
-Nossa, você é um ótimo livreiro!
-Medíocre.
-O que?
-Tô na média.
-Na média de que?
-Do conhecimento literário.
-Hum... mas O Pequeno Príncipe é lindo, não é? Não sai de moda!
-É igual ao tubinho preto da Chanel.
-Quem?
-É uma moça da moda. As misses estão muito ligadas à moda...
-Hum... bem, deixe eu ir, porque tenho que comprar ainda, uma calça jeans. Depois eu volto, tá?
-Maravilha, conto sempre com a sua presença. Foi uma conversa enriquecedora.
-Eu adoro cultura. Você tem um cartãozinho da loja? Brigaada!... Tchau!

MUQUIFO NA LIVRARIA, 3

A TROCA

Existe uma lenda viva do mercado livreiro, uma referência na paciência e no bom atendimento, chamado Tião.
Tião trabalhou há uns vinte anos atrás na livraria em que trabalho agora, onde entrou uma senhora muito bem alinhada:
-Eu sou cliente assídua de vocês e compro muito com aquele moço... preto... como é que ele chama?!
-(...)
- Nossa, ele me atende tão bem... ele é moreninho...Tição!
-Tião?
-Um afro-descendente?
-(...)
-É, eu acho que é ele mesmo, o Tião. Ele é ótimo! Cadê ele?
-Ele não trabalha mais aqui.
-Serve você mesmo.
-Obrigado!
-De nada. Pois é, eu gosto muito de ler e compro muito com Tião, inclusive eu acho que foi com ele que minha amiga comprou este livro pra me dar de presente. Mas esse livro fala de morte e eu não gosto de nada que fale de morte. Troca pra mim filhinho; se o que eu escolher for mais caro, eu divido no cartão. Quantas vezes vocês dividem?
-Em duas vezes, nas compras acima de sessenta reais.
-Nossa!!! O Tição me dividia mais...
Quis perguntar-lhe em quantos pedaços...
-Me indica um livrinho aí, filhinho...
-A senhora já leu "O que Esperar Quando Está Esperando"? Fala de nascimento.

MUQUIFO NA LIVRARIA, 2.

BRANQUINHAS

-Eu gostaria de dar uma olhadinha em um livro que está ali, na vitrine, pode ser?
-Claro. Qual?
-O das africanas.
-Ah! O de nus.
-Eh... é.
-Aqui está.
-Ah, mas ele está fechado...
-Imagine, eu o abro agora pro senhor.
-Mas eu não sei se vou comprá-lo!
-Imagine, não tem importância, nós só o embalamos por causa da fuligem que vem da rua.
-Do que?
-Do pó.
-Tá falando do preto, né?
-É, da poeira preta.
-Que poluição, né? Essa noite eu tossi!
-(...)
-Vou ver, então; mas eu tenho que passar ali no banco pra pegar dinheiro... vocês aceitam todos os cartões de crédito?
-Sim, todos.
-Os de débito?
-Sim, todos.
-Cheque?
-Sob consulta, sim.
-Eu vou dar uma olhadinha e vou lá no banco pegar dinheiro.
-(...)
Após folear o livro, em segundos, perguntou:
-Você não tem um livro africano aí, com umas branquinhas, não? Fica um livro insistente...
-É um livro etnográfico, africanas branquinhas é mais raro, talvez importando...
-Ah não, dá muito trabalho!
-No câmbio negro...
-Ah não, tô querendo branquinhas...
-Não senhor, eu não tenho.
-Eu vou lá, pegar o dinheiro. De repente, fico com este aqui mesmo.
Nunca voltou.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

MUQUIFO NA LIVRARIA

-Ligou uma vez.
Livro esgotado.
Ligou outra vez:
-Tenta consegui-lo pra mim! Minha filha vai ter prova amanhã e deixou pra última hora...
-Tudo bem, isso não é novidade; é difícil, mas eu irei tentar para a senhora.
Encontrei o livro e liguei. "Puxa vida, encontrei um livro esgotado na editora! Retornei a ligação"
-(sêca) Tá, vou pegá-lo.
"Não apareceu".
-Liguei novamente: Maria, por favor!
-Qual Maria?
-Bem, ela até falou o sobrenome, mas eu só anotei Maria. Ela encomendou um livro aqui na livraria e deixou este número. Este setor é o dela?
-Sim.
-Quantas Marias tem aí?
-Duas.
-Com quem eu estou falando?
-Com a Maria das Dores.
-Foi você quem encomendou o livro?
-Não.
-Como chama a outra Maria?
-Maria das Flores.
-Maria das Dores, por gentileza, me chame a Maria das Flores!!!
-Ela não está.

SEGUNDA PARTE:

-Alô!
-Alô, quem está falando?
-Maria.
-Qual Maria?
-Com qual Maria que você quer falar?
-A das Flores.
-Ela não está.
-A que horas posso falar com ela?
-Mais tarde.
-Maria das Dores, a que horas eu poderei falar com a Maria das Flores?
-Lá pelas duas, ela foi almoçar.
-Muito obrigado, Das Dores!

TERCEIRA PARTE:

-Alô!
-Maria das Dores, a Maria das Flores já chegou do almoço?
-Não.
-Você, Maria das Dores, me disse que lá pelas duas... são três e dezenove...
-Um momento. Quem tá falando?
-É o rapaz da livraria.
-Peraí.
-Pero.
-Alô... alô! (toca "Jesus Alegria dos Homens")
A ligação cai.


QUARTA PARTE:

-Gabinete tal, Maria das Dores falando...
-(...)
-Alôaah!!!
-Oi Maria, a outra está aí?
-Quem tá falando?
-Maria, a ligação caiu...
-Quem fala?
-Acabei de falar com você!
-Peraí.
"Jesus a Alegria dos Homens"
-Sim!
-Maria das Flores?
-Sim.
-É o rapaz da livraria, tudo bem?
-Sim.
-Seu livro, o que estava esgotadíssimo na editora, chegou.
-Ah! Meu marido já comprou, brigaada!